segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

"Ai que vida boa, ô lerê, ai que vida boa, ô lará!

"Vai passar nessa avenida um samba popular" (Chico Buarque)

O carnaval e a carnavalização 
"Dialética e sensibilidade fazem emergir um mundo de alegria, de prazer sem culpa, despido de repressão e de hierarquias e onde todos são iguais, presente no período da festa, mais precisamente na maior delas – o carnaval. O que estimula pensar-se na possibilidade de extrapolação daquele momento e de concretização no quotidiano de uma sociedade marcada pelo riso que jamais seria um instrumento da opressão." (SOIHET, 1998, p. 9)
O sagrado e o profano, o nascimento e a morte, a elevação e o rebaixamento são elementos presentes nessa festividade, momento em que os opostos convivem em um mesmo universo e de forma cômica, através do riso carnavalesco. Esse riso difere do riso individual proveniente de um fato cômico isolado, pois no carnavalesco todos riem, o riso é "geral" e patrimônio do povo. É também universal, pois atinge todas as coisas e pessoas, inclusive as que participam do carnaval (BAKHTIN, 1987, p. 10). O riso carnavalesco é ambivalente, pois, ao mesmo tempo em que nega, afirma, é alegre e simultaneamente sarcástico, amortalha e ressuscita. Para Bakhtin, no carnaval, não há distinções sociais e/ou outras, o que ocorre são inversões da ordem das coisas e da vida; tais inversões, aliadas à abolição das fronteiras das hierarquias sociais, marcam o efeito denominado por Bakhtin carnavalização. Rituais sagrados são parodiados, os bufões são coroados reis, até mesmo a linguagem é afetada por essa eliminação provisória da ordem do mundo.
[...] todas as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas "ao avesso", "ao contrário", das permutações constantes do alto e do baixo ("a roda"), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações coroamentos e destronamentos bufões (BAKHTIN, 1987, p. 9-10).
"Seus filhos erravam cegos pelo continente, levavam pedras feito penitentes Erguendo estranhas catedrais." – Chico Buarque
A festa oficial – com privilégios, regras, hierarquias, tabus e etiquetas – é parodiada pelo carnaval, de forma a utilizar esses elementos de ostentação e subvertê-los, rebaixando-os com a licença do riso. No Brasil, Queiroz (1992) e Matta (1981) destacam que a festa carnavalesca é um momento de catarse popular que é permitido e controlado pela classe dominante, a fim de manter sua hegemonia. Por esse ponto de vista, o carnaval seria, então, uma liberdade popular restrita a limites preestabelecidos e controlados pela classe dominante. Contudo, segundo Soihet (1998), muitos historiadores combatem tal acepção, pois existem muitas estratégias de resistência dos populares no campo cultural em relação às proposições das classes dominantes. Bakhtin, entretanto, não aposta nessa ideia de liberdade restrita a anseios da elite. Ao contrário, o autor russo propõe o carnaval como um momento de igualdade entre os indivíduos, em que as diferenças hierárquicas são abolidas em função da força regeneradora criadora do riso carnavalesco.
"Um dia página infeliz da nossa história, passagem desbotada da memória (...)  Dormia a nossa pátria mãe tão distraída sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações" – Chico Buarque

No caso brasileiro, o carnaval proporciona esse relacionamento entre classes com relativa igualdade, porém em um período de tempo limitado ao desfile na passarela do samba. Após desfilar na avenida, na maioria das vezes, a elite dirige-se ao camarote, à bancada restrita à classe alta, enquanto os pobres tomam rumos ignorados pela grande mídia, apenas fazendo volume nas alas e arquibancadas. Com isto, o conceito de eliminação provisória das barreiras hierárquicas apontadas por Bakhtin no contexto rabelaisiano também é válida no contexto brasileiro, já que é possível observar tal fenômeno em situações como nos desfiles das escolas de samba. Mas, como o próprio Bakhtin indica, tal eliminação de classes é provisória, sendo logo após o evento, restaurada.

"Vai passar nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
Num tempo página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos erravam cegos pelo continente,
levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval
Vai passar, palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
e os pigmeus do boulevard
Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade até o dia clarear
Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral... vai passar"

(Vai passar - Chico Buarque) 

Fica a dica:
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC, 1987.  
MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 



Um comentário:

Livyan disse...

Concordo plenamente Rêna!"Pão e circo". Tipo uma maravilha multifacetada da desordem social. Parabéns pelo blog! Bjs Rúculas intelectualizada.