terça-feira, 4 de agosto de 2009

Deus é paciência. O contrário, é o diabo.

"(...) Estremeço. como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não te mDeus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor.


Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos - não dói sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver - a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer céu é porque quer um sem fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo.

Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual eme meus gostos. O que eu invejo é a instrução do senhor... " (Riobaldo em Grande Sertão)

Sobre a morte

"O cortejo dos baianos dava parecença com uma festa. No sertão, até enterro simples é festa.

Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: - 'Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...' ciente me respondeu."

e Riobaldo continua....


(...) O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religiaão. aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, pra mim é pouca, talvez não me chegue. (...) Tudo me quieta, me suspende, qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar - o tempo todo.


Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês - encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia e, nos domingos um rosário. Vale, se vale. (...) E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta...


Viver é muito perigoso... querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querer o mal, por principiar. (Riobaldo em Grande Sertão)

Ouvindo Riobaldo dizer...


"O senhor sabe: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. diverjo de todo mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor salte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!!!

Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem os sábios, políticos, constituições, gradas, fecharem o definitivo a noção - proclamar por uma vez, artes, assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim davam tranquilidade boa à gente. Por que o governo não cuida?!

Ah eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é por idéias arranjadas, outras é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente - dá susto saber - e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons... (...) Ou a gente tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só. eu podia ser padre sacerdote, senão chefe de jagunços; pra outras coisas não fui parido. Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta. E o reumatismo... Lá como quem diz: nas escorvas. Ahã."


(Grande Sertão Veredas- Guimarães Rosa)